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Sérgio de Carvalho diretor de “Noites Alienígenas” fala sobre a importância e a riqueza do cinema acreano

Texto: Thaís Melo

 

O cinema acreano existe há décadas, mas infelizmente ainda faltam recursos e profissionais especializados em audiovisual na região. Com isso, as produções acreanas acabam não chegando ao circuito cinematográfico nacional e ficam mais restritas a região Norte do país. Mas esse ano tivemos um filme que mudou esse cenário, “Noites Alienígenas” foi exibido no Festival de Cinema de Gramado onde levou cinco kikitos.

 

O longa-metragem mostra a história de três jovens: Rivelino, Sandra e Paulo que se conhecem desde a infância. Ao mesmo tempo em que mostra a jornada de cada um deles, o drama também apresenta o impacto da chegada das facções criminosas que migraram do Sudeste do país para a região amazônica. A história que se passa em Rio Branco mostra uma Amazônia urbana, mas incorpora alguns elementos místicos sutis a trama.

 

Com direção de Sérgio de Carvalho e produção de Karla Martins a obra foi produzida pela Saci Filmes e foi o primeiro filme do Acre a ser premiado no Festival de Cinema de Gramado. E não só isso, pois o longa também foi o grande vencedor da última edição do festival levando os prêmios de melhor filme, melhor ator para Gabriel Knoxx, melhor atriz coadjuvante para Joana Gatis e melhor ator coadjuvante para Chico Diaz. Recebeu ainda o prêmio do júri da crítica e uma menção honrosa a Adanilo, ator indígena que participou da produção. O longo estreou nos cinemas brasileiros em março e atualmente está disponível na Netflix.

 

Com uma linguagem que por vezes chega a ser poética, mas ao mesmo tempo não hesita em passar a sua mensagem, a obra chamou a atenção nos festivais em que esteve por um bom motivo. Mas para saber mais não apenas sobre “Noites Alienígenas”, mas também sobre o cenário atual do cinema produzido no Acre entrevistamos o diretor e idealizador do filme Sérgio de Carvalho.

 

Nascido no interior de São Paulo e tendo feito faculdade no Rio de Janeiro foi no Acre onde o cineasta Sérgio de Carvalho encontrou o seu lar. Segundo o diretor foi o trabalho no audiovisual que o levou até o Acre. “Quem me levou para o Acre acabou que foi o cinema mesmo, eu fui acompanhando a atriz Lucélia Santos como videomaker em uma passagem dela por um festival em Rondônia e depois da exibição do filme dela no Acre eu me apaixonei pelo lugar. Foi em um momento bem interessante em que tinha muita coisa acontecendo e eu tenho toda essa ligação com a cultura amazônica e com os povos da floresta. Então, há 20 anos fiz do Acre o meu lar”, contou o cineasta.

 

 

Tendo feito toda a sua carreira no estado, ele conhece bem as dificuldades e desafios para se produzir conteúdo audiovisual na região, mas além disso, como morador do local ele também conhece de perto as dificuldades enfrentadas pela população e foi ao notar uma dessas dificuldades que ele teve a ideia para escrever o livro “Noites Alienígenas” de 2011 que posteriormente foi adaptado para o cinema.

 

“No livro principalmente eu queria muito falar da questão da dependência química que eu acho que é uma questão de saúde pública que atinge muitos jovens e que quando eu cheguei ao Acre eu não tinha ideia do quão grave era essa problemática lá e talvez por ser um estado de fronteira muito do que sobra do refinamento da cocaína, o crack, acaba ficando nessas bordas do Brasil. E eu me espantei muito com a quantidade de dependentes químicos e hoje está pior do que 20 anos atrás. Atualmente no centro de Rio Branco a gente já vê uma espécie de cracolândia, então eu queria muito falar sobre esse assunto, pois é um tema que me toca muito. Apesar de eu nunca ter tido nenhum problema com drogas químicas, muitas pessoas perto de mim já tiveram. E assim nasceu o livro “Noites Alienígenas””, explicou o autor.

 

Mas anos depois do lançamento do livro quando ele foi ser transformado em roteiro para o primeiro longa do diretor ele notou uma mudança importante no cenário da região. “Quando eu fui passar da literatura para o cinema, eu percebi que aquela periferia do Acre já não era mais a mesma. Com uma diferença de mais ou menos 10 anos, o Acre já era completamente outro território, tomado pelas facções. A maioria delas vindas do sudeste do Brasil”, explicou o diretor. E essa mudança no cenário local foi retratada no filme.

 

O diretor também falou um pouco sobre a importância de retratar o Acre no cinema e mais do que isso, mostrar o lado urbano da região e não apenas a floresta. “A gente ainda tem uma visão muito estereotipada do Norte do Brasil, da Amazônia e por isso acaba que a produção feita na Amazônia ela sempre acaba sendo muito do exótico, do estereótipo e penso que esse olhar tá mudando. Então, eu acho que nós precisamos educar o olhar para encontrar a realidade da maneira que ela nos apresenta. Eu mesmo antes de me mudar para o Acre tinha uma visão imagética muito do exotismo, do que seria, do que é a Amazônia e eu fui me despindo dessa visão. Fui reeducando o olhar, vivenciando o Acre profundamente. Indo para as aldeias, vivenciando rituais com os indígenas, e eu acho que essa vivência o encontro com as pessoas do Acre e com essa Amazônia que também é urbana foi decisivo para a criação do Noites Alienígenas”, relatou o roteirista.

 

 

Outro ponto fundamental para a produção audiovisual feita no Acre ter uma dificuldade maior de alcançar o resto do Brasil se deve a falta de recursos e como alguém que já trabalha há cerca de duas décadas na região Sérgio de Carvalho contou sua percepção sobre essa situação. “Acho que é muito importante que os produtores e realizadores amazônicos tenham recursos para produzir muito e criar uma narrativa de dentro para fora e não o contrário que é o que geralmente acontece quando se retrata a Amazônia e suas questões. O cinema do norte tem muitos desafios, entre eles a formação, nós ainda precisamos de escolas, de cursos técnicos e de universidades que realmente formem a galera do audiovisual. Pelo menos no Acre, que é a realidade que eu posso falar com mais propriedade, faltam algumas funções técnicas do cinema. Não temos um diretor de fotografia, por exemplo. Ainda nos faltam muitos profissionais e por isso acabamos sempre tendo que trazer profissionais de fora”, mas as dificuldades não se limitam a falta de mão de obra especializada.

 

De acordo com o diretor outro desafio é o custo do deslocamento na região amazônica já que as distâncias são longas. Além disso, o clima também é outro fator que complica as filmagens na região, já que segundo ele, geralmente é muito chuvoso ou muito seco. Na visão do diretor esses fatores acabam afetando o orçamento das produções.

 

Ele comentou ainda sobre a questão burocrática envolvida. “Também tem a política de editais da Ancine de pontuação que acaba sendo muito excludente para as produções realizadas no Norte do país, que é um mercado que é uma potência em possibilidades narrativas estéticas e criativas. Entretanto ainda não temos muitas produtoras com as pontuações que a Ancine exige. Então, eu acho que tá faltando um olhar mais sensível nesses editais”, explicou.

 

Sérgio de Carvalho também falou sobre como foi participar do Festival de Cinema de Gramado e ainda sair vitorioso de lá. “Ganhar os kikitos foi uma experiência incrível, a gente foi para o festival sem muita expectativa, já era uma vitória estar ali e penso que essa quantidade de prêmios que a gente ganhou inclusive de melhor filme foi de alguma maneira muito representativo para o cinema produzido no Norte, eu recebi muitas mensagens de realizadores de toda a Amazônia que se sentiram muito representados pelo filme. Então, foi uma alegria muito grande, um sentimento de responsabilidade também de ser um porta voz do que tá sendo produzido na Amazônia”, relembrou o cineasta a respeito da sua conquista.

 

Após essa trajetória de sucesso que o filme fez nos festivais e de ter sido um marco para o cinema acreano, perguntamos ao cineasta se ele espera que o longa tenha algum impacto no mercado audiovisual do Acre. “Espero que o filme se torne uma referência para a gente dizer que é possível fazer filme na Amazônia, filme com qualidade, pois tem muitas coisas boas que já foram feitas. Então, acredito que ajudou a despertar um olhar de interesse pelos possíveis produtos audiovisuais que podem vir da região Norte”, relatou.

 

O diretor falou ainda que para lidar com um elenco tão diverso que tinha atores consagrados contracenando com novos nomes da atuação ele contou com uma boa preparação de elenco. “O trabalho com o elenco foi incrível, eu tive um super preparador que é o Germano Melo e ele veio para somar a equipe de uma maneira magistral e foi incrível ver esse trabalho de atores sem experiência nenhuma em audiovisual como o Gabriel Knoxx, atuando junto com atores renomados como o Chico Diaz e a Joana Gatis. Foi muito bonito ver essa troca, essa alquimia que se deu no encontro dos atores com experiência e os atores inexperientes todos com muita garra, se entregaram mesmo ao processo e se jogaram nos personagens. Foi muito bonito de ver a generosidade do Chico Diaz compartilhando a sua experiência com atores tão novos, foi um processo muito rico, muito mágico de atuação, de preparação, de troca e de compartilhamentos”, relatou o cineasta.

 

 

Toda essa entrega do elenco fica nítida em tela para quem assiste ao filme. As atuações são muito cruas e sensíveis ao mesmo tempo. Com o talento de Chico Diaz sendo uma espécie de fio condutor para que os atores mais jovens também brilhem.

 

Sobre o impacto que ele espera que “Noites Alienígenas” tenha no público, o diretor afirmou que o importante é conseguir chamar a atenção para a temática do filme. “É difícil falar qual o impacto que a gente espera que a obra tenha. Nas sessões de cinema que eu presenciei foi muito bonito ver como no final as pessoas ficaram muito comovidas. Eu penso que se ele tiver ajudando a chamar a atenção para esse genocídio de jovens que a gente vive nas periferias do Brasil, principalmente jovens negros e jovens indígenas e entender que ninguém vira bandido por querer virar. Que tem uma questão social muito mais profunda por trás e que temos que debater a descriminalização das drogas. Enfim, acho que a gente precisa falar sobre essas coisas e espero que o “noites” possa tá contribuindo nesse debate”, explicou.

 

Sobre os seus projetos futuros o diretor contou que está trabalhando em um argumento junto com o também diretor Sérgio Machado e com o ator Jorge Paes para uma produtora. O projeto é sobre Chico Mendes, mas como ainda está em fase inicial ele não pôde falar muito a respeito. Com o talento e o olhar sensível que ele já provou ter, independente de como vá ser esse novo projeto certamente podemos esperar algo muito bom vindo por aí.

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